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"Ensaio sobre a Cegueira" – por Contardo Calligaris

20/12/2008


Somos capazes de tudo: o apocalipse nos testa e nos revela a nós mesmos e ao mundo

GOSTO DOS romances e dos filmes apocalípticos, ou seja, das histórias em que algum tipo de fim do mundo (guerra nuclear, invasão extraterrestre, epidemia etc.) nos força a encarar uma versão laica e íntima do Juízo Final. Nessa versão, Deus não avalia nosso passado, mas, enquanto o mundo desaba, nosso desempenho mostra quem somos realmente. No desamparo, quando o tecido social se esfarela e as normas perdem força e valor, conhecemos, enfim, nosso estofo “verdadeiro”. Somos capazes do melhor ou do pior: o apocalipse nos testa e nos revela.

O primeiro romance apocalíptico (de 1826) talvez tenha sido “O Último Homem” (ed. Landmark), de Mary Shelley, que é também a autora de “Frankenstein”. De fato, as duas obras são animadas pelo mesmo sonho: uma criatura radicalmente nova pode ser fabricada no bricabraque de um necrotério ou nascer das cinzas da civilização. Em ambos os casos, ela será sem história, sem ascendência, sem comunidade e, portanto, penosamente livre – para o bem ou para o mal.

No romance de Mary Shelley, aliás, a causa da catástrofe é uma epidemia, como na “Peste”, de Camus, e como no “Ensaio sobre a Cegueira”, de Saramago, que é agora levado para o cinema por Fernando Meirelles.

A obra de Meirelles é fiel ao livro que a inspira, mas, para contar a mesma história, consegue inventar uma eloqüência própria, sutil e forte. Por exemplo, o filme banha numa luz esbranquiçada e difusa que não é apenas (como foi dito e repetido) uma evocação da cegueira branca que aflige a humanidade: é a atmosfera ordinária de nosso universo desbotado, em que a trivialidade do cotidiano desvanece os contrastes – até que as sombras e os brilhos sejam revelados na “hora do vamos ver”, que acontece, paradoxalmente, porque todos (ou quase todos) perdem a visão.

Depois de assistir ao filme, li algumas das críticas que ele recebeu em Cannes. A nota de Manohla Dargis, no “New York Times” de 16 de maio, por exemplo, é paradoxal: Dargis acusa o filme de ser uma Alegoria com “A” maiúscula, em que, aos personagens, faltaria espessura. Certo, os personagens de “Ensaio sobre a Cegueira” quase não têm história prévia, assim como a cidade em que os fatos acontecem (uma mistura de São Paulo com Toronto) é uma cidade moderna qualquer, cujas particularidades não contam. Essa, justamente, é a beleza do gênero: o surgimento quase abstrato de uma situação extrema, em que se trata de escolher e agir a partir de nada. O passado, o lugar não contam: os personagens são definidos por suas escolhas aqui e agora.

Dargis também se queixa da oposição que lhe parece excessiva, no filme, entre “os bons” e “os ruins”, ou seja, entre os que, na cegueira, descobrem e aprimoram sua humanidade e os que a perdem. É uma queixa curiosa, pois, em quase todas as narrativas apocalípticas, a contraposição de retidão e bestialidade é o sinal de uma liberdade quase absoluta, angustiante: o fim do mundo é um bívio sem leis, sem flechas, sem compromissos, onde qualquer um pode escolher o horror ou a esperança. A oposição caricata dos bons e dos ruins expressa a incerteza do espectador, do leitor e do autor: “Você, se, por uma misteriosa epidemia, o mundo ficar cego, se o reino da lei acabar e começar a idade da luta pela sobrevivência, de que lado estará? Do lado dos que inventarão novas formas de abusos ou dos que descobrirão novas formas de respeito e de vida comum? Uma vez perdida a visão, o que você enxergará no seu vizinho: mais uma mulher para estuprar e um otário para explorar ou um irmão, perdido que nem você?”

No “Ensaio sobre a Cegueira” (de Meirelles e de Saramago), diferente do que acontece em muitas narrativas apocalípticas, a heroína é uma mulher, e as mulheres são as depositárias da esperança; elas saem engrandecidas pelas provas da situação extrema.

São elas que, para o bem de todos, entregam-se aos estupradores, aviltando não elas mesmas mas os que as violentam, com uma coragem que salienta a covardia dos maridos ciumentos ou zelosos de sua “honra”. São elas que sabem cuidar de uma criança ou matar quando é preciso. São elas que reinventam a amizade (em cenas memoráveis: a das mulheres lavando o corpo da companheira espancada à morte e a das mulheres no chuveiro).

Aviso, caso, um dia, a gente tenha que recomeçar tudo do zero: em geral, as mulheres sabem, melhor do que os homens, o que é essencial na vida.

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ccalligari@uol.com.br
Fonte: Folha de S. Paulo, 18 de setembro de 2008

A arte em Marx: um estudo sobre Os manuscritos econômico-filosóficos – por Celso Frederico

13/12/2008

À memória de Octavio Ianni

O interesse de Marx pela arte é antigo. Em seus anos de formação universitária, junto com o direito e a filosofia, Marx empenhou-se seriamente no estudo da literatura e da estética, tendo acompanhado os cursos de Schlegel sobre literatura antiga. No início de 1842, paralelamente à atividade jornalística, dedicou-se a escrever um Tratado sobre a arte cristã, além de dois ensaios, Sobre a arte religiosa e Sobre os românticos. Todo esse material se perdeu, informa Lifshitz, que pesquisou os cadernos de leitura nos quais Marx fazia anotações preparatórias e resumos de livros que serviram de base para a redação dos referidos textos.

Durante o ano de 1843, Marx deixou de lado o estudo da arte por causa, certamente, da sua atribulada militância jornalística e do início de seu exílio em Paris. Em 1844, a mudança nos rumos de suas investigações repôs o interesse pela arte, como transparece nas páginas dos Manuscritos econômico-filosóficos. Marx, então, debate-se com a dupla influência de Hegel e Feuerbach, fato que marcará profundamente as suas incursões na estética. Estamos diante de um jovem autor às voltas com influências teóricas contraditórias e desejoso de encontrar um caminho para poder consolidar suas própriasidéias…

para ler o texto na íntegra clique >>> http://www.institutoastrojildopereira.org.br/novosrumos/file_42/encarte.pdf

Fonte: Revista Novos Rumos, Ano 19, nº 42, 2005.

Onde Encontrar a Sabedoria, de Harold Bloom (trecho)

10/12/2008

Sabedoria*

Todas as culturas do mundo — da Ásia, da África, do Oriente Médio, da Europa, do hemisfério ocidental — preconizam escritos sapienciais. Há mais de meio século estudo e ensino a literatura decorrente do monoteísmo e sua subseqüente secularização. Onde Encontrar a Sabedoria? resulta de uma necessidade pessoal, e reflete a busca de um saber que possa aliviar e esclarecer os traumas do envelhecimento, do convalescimento após doença grave, e do pesar causado pela perda de amigos queridos.

Recorro a apenas três critérios em relação ao que leio e ensino: esplendor estético, força intelectual e sapiência. Pressão social e modismos jornalísticos conseguem obscurecer, durante algum tempo, tais padrões, mas Obras Datadas jamais sobrevivem. A mente sempre volta às suas próprias necessidades de beleza, verdade, discernimento. A mortalidade flutua no ar, e todos aprendemos que o tempo triunfa. “Vivemos um intervalo e, então, nosso lugar não mais nos reconhece.”

Cristãos que crêem, muçulmanos que obedecem, judeus que confiam — em Deus ou na vontade de Deus — têm seus próprios critérios de sabedoria, mas cada grupo precisa normatizar a questão, separadamente, para que as palavras de Deus possam iluminar e consolar. Os secularistas assumem um outro tipo de responsabilidade, e sua busca da literatura da sapiência é, por vezes, mais melancólica, ou angustiada, dependendo do seu temperamento. Sejamos religiosos ou não, todos aprendemos a almejar a sabedoria, onde quer que seja encontrada.

No início do século XXI da Era Comum, os Estados Unidos e a Europa Ocidental se apartam, em decorrência de um número de fatores quase igual àquele que os mantêm na condição de aliados apreensivos. Na realidade, o Novo Mundo tem uma existência tão secular quanto a maioria da Europa, mas os norte-americanos costumam separar a vida exterior da interior. Muitos chegam a conversar com Jesus, e seus testemunhos podem ser persuasivos (em termos absolutos). Para tais indivíduos, a religião não é o ópio, é a poesia da humanidade, motivo pelo qual rejeitam o que sabem a respeito de Marx, Darwin e Freud. No entanto, essas mesmas pessoas têm sede de sabedoria laica, para suplementar-lhes os encontros com o divino.

Os escritos sapienciais, a meu ver, possuem padrões implícitos de força estética e cognitiva. O presente livro se propõe a apresentar normas que interessam a mulheres e homens alfabetizados, “leitores comuns”, conforme os chamava Virginia Woolf, seguindo Samuel Johnson. O aviltamento de sábias tradições inunda o mercado: divas do mundo pop ostentam objetos supostamente cabalísticos, invocando assim a tradição oculta do Zohar, obra-prima do esoterismo judaico. A sabedoria de Kierkegaard, marcantemente urgente apesar da camuflagem irônica, pára diante da fronteira do esotérico, diante do que o grande estudioso da Cabala, Moshe Idel, denomina “a Perfeição que absorve”. Com sutileza, Idel se antepõe ao seu heróico precursor em estudos cabalísticos, o eminente Gershom Scholem, que falara da “luz intensa do canônico, da Perfeição que destrói”. A sabedoria, seja esotérica ou não, parece constituir uma Perfeição capaz de nos absorver ou destruir, dependendo do aporte que a ela trazemos.

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Qual será a utilidade da sabedoria, se esta só pode ser alcançada na solidão, na reflexão acerca de leituras? A maioria de nós é consciente de que a sabedoria voa janela afora, quando nos encontramos em crise. A idéia de ser como Jó constitui, para a maioria de nós, uma experiência menor: mas a casa de Jó desaba, seus filhos são mortos, seu corpo é coberto de furúnculos, e a esposa, extraordinariamente lacônica, o adverte: “Persistes ainda em tua integridade? Amaldiçoa a Deus e morre duma vez!” (2,9). Isso é tudo o que ela diz, mas é difícil resistir a tais palavras. O Livro de Jó encerra uma estrutura dotada de crescente autoconsciência, em que o protagonista passa a ver a si mesmo em relação a um Javé que se fará ausente quando bem lhe convier. E esse livro, que é o mais sábio da Bíblia Hebraica, não nos oferece conforto algum, na aceitação de tal sabedoria.

O rei Davi inicia o Salmo 22 lamentando-se — “Senhor, por que me desamparaste?”; trata-se do clamor de seu descendente, Jesus Nazareno, na cruz. O Salmo 23 é cantado por Sir John Falstaff, no leito de morte, em Henrique V, segundo o relato de Mistress Quickly, que confunde os versos “Deitar-me faz em verdes pastos” e “Preparas a mesa perante mim, na presença dos meus inimigos”, e nos fala de “mesa de verdes pastos”. W. H. Auden pensava que Falstaff era para Shakespeare uma imagem do Cristo. Tal noção me parece, igualmente, confusa, mas é preferível à rejeição de Falstaff como velho glutão beberrento, senhor da desordem. A pungência de Auden expressa certa sabedoria, ao passo que estudiosos que denigrem Falstaff são mortos-vivos, na melhor das hipóteses.

Não acho que a literatura da sapiência traga conforto: Jó não foi capaz de consolar Herman Melville e seu capitão Ahab; antes, provocou em ambos uma reação furiosa, diante da pergunta retórica que Deus lhe faz: “Poderás pescar com anzol o Leviatã?” Quanto a mim, reajo com indignação ainda maior às palavras de Deus — “Fará ele aliança contigo?” —, a despeito de valorizar o fato de o poeta que escreve o Livro de Jó invocar, de modo tão esplêndido, o Javé que consta do início dos escritos de “j”, autor(a) primordial do palimpsesto que hoje lemos sob os títulos de Gênesis, Êxodo e Números. Caprichoso, e até sarcástico, esse Javé sinistro deve ser temido, temor que constitui o início da sabedoria.

Jó e Eclesiastes, Homero e Platão, Cervantes e Shakespeare preconizam uma sabedoria severa, suspensa entre a ironia e a tragédia. A ironia de uma era, ou de determinada cultura, dificilmente corresponderá a qualquer outra, mas toda ironia se propõe a afirmar algo cujo sentido é diverso do óbvio. A tragédia, mesmo que seja vista como jubilosa, conforme a percebia W. B. Yeats, não era aceitável a Platão, que repudiou a visão da Ilíada que a maioria de nós considera trágica. Crescimento e mortalidade não configuram sabedoria, para Platão, a quem Cervantes e Shakespeare seriam ainda mais censuráveis do que Homero.

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A literatura da sapiência nos ensina a aceitar os limites naturais. O saber secular de Cervantes e Shakespeare (ambos forçados a esconder o ceticismo) beira a transcendência, em Dom Quixote e Hamlet, mas o Cavaleiro Tristonho sucumbe ao desencantamento sensato de um túmulo cristão, e o Príncipe alcança a apoteose tão-somente no silêncio tranqüilo do aniquilamento.

Desde a infância, encontro conforto na sabedoria talmúdica, que se concentra no Pirke Aboth, “Provérbios dos Patriarcas”. Na terceira idade, sempre recorro ao Aboth, que vem a ser uma suplementação tardia do extenso Mishná, a “Torá Oral”, volume poderoso que nos ensina a seguir as advertências rabínicas. O Pirke Aboth é inteiramente composto de epigramas, aforismos, provérbios, e mitiga o implacável Mishná, marcado por debates de natureza legal e moral. Existem duas excelentes traduções comentadas do Pirke Aboth em língua inglesa, realizadas pelo unitarianista inglês R. Travers Herford (1925) e pelo grande erudito Judah Goldin (1957). Lembro-me de que Goldin, ao me presentear com um exemplar do livro, disse que admirava o trabalho de Herford, mas que gostaria de dispor de uma versão mais talmúdica do Aboth. Ambos os livros são esplêndidos, e aqui os utilizarei indiscriminadamente.

Hillel costumava dizer: Se eu não for por mim, quem o será? E quando sou por mim, o que sou? E se não for agora, quando será? (Herford)

Hillel costumava dizer: Se eu não for por mim, quem então? E, sendo por mim, o que sou? E se não for agora, quando será? (Goldin)

Eis uma sabedoria perfeita, equilibrada. Eu afirmo a mim mesmo, mas se sou apenas por mim, o posicionamento é inadequado; e se o apoio que ofereço a mim mesmo e a terceiros não ocorrer no presente, quando haverá de ocorrer? Hillel também observou: “Não digais, quando eu tiver um tempo livre, vou estudar — talvez, jamais tereis um tempo livre.” Quem pode esquecer as palavras de Hillel: “Onde não houver homens, esforçai-vos para agir como um homem”? Espirituoso, mesmo quando irritado, Hillel é absolutamente memorável:

Ele costumava dizer: Mais carne, mais vermes; mais riqueza, mais preocupação; mais mulheres, mais feitiçaria; mais criadas, mais lascívia; mais criados, mais roubo; mais Torá, mais vida; mais assiduidade, mais sabedoria; mais conselho, mais entendimento; mais caridade, mais paz. Aquele que adquire boa reputação o faz apenas para si. Aquele que faz aquisições a partir da Torá garante, para si, vida no mundo que há de vir.

Meu aforismo predileto é uma advertência sutil do rabino Tarphon: “Não sois obrigado a concluir a obra, mas tampouco estais livre para desistir dela.” A despeito do número de aulas que eu precisava ministrar, e da quantidade de escritos que precisava concluir, quando me encontrava enfermo, deprimido ou exausto, a melodia cognitiva de Tarphon sempre me animava. Mas, chego ao final dessas reflexões introdutórias, invocando aquele que é hoje considerado a maior figura entre os fundadores do judaísmo — o rabino Akiba —, martirizado pelos romanos, por ter inspirado a insurreição de Bar Kochba contra Roma, no século II da Era Comum.

Ele costumava dizer: Tudo é oferecido como penhor, e a rede é lançada sobre todos os vivos; a loja se encontra aberta e o lojista oferece crédito, e o livro contábil está aberto e a mão escreve, e que todos os que desejem tomar emprestado venham fazê-lo; e os credores circulam, diariamente, e obtêm pagamentos dos devedores, com ou sem o seu conhecimento. E eles têm em que se basear, e o julgamento é verdadeiro, e tudo é preparado para o banquete. (Herford)

Ele costumava dizer: tudo é dado em penhor e uma rede é lançada sobre todos os seres: a loja está aberta, o lojista oferece crédito, o livro-razão fica aberto, a mão escreve, e quem deseja pedir empréstimo pode vir fazê-lo; e os credores circulam, diariamente, e obtêm pagamentos, com ou sem o consentimento do devedor. Eles têm em que basear as cobranças. E o julgamento é verdadeiro. E tudo está preparado para o festim. (Goldin)

Tais palavras marcam a Aliança, e são poucas as palavras que o fazem tão bem. Se sabedoria é confiar na Aliança, não posso conceber como a sabedoria haverá de avançar.

Capítulo 1 Hebreus: Jó e Eclesiastes

Nenhum estudioso duvida que a literatura da sapiência produzida no passado de Israel tenha sido influenciada por precursores egípcios e sumérios. Ambas as modalidades de sabedoria — prudente e cética — foram legadas aos hebreus, a primeira nos Provérbios; e a busca sombria pela justiça de Deus foi dispensada em Jó e no Eclesiastes. Os cânones da ortodoxia oriental e do catolicismo romano incluem tais modalidades, bem como a Sabedoria de ben Sirach (século II antes da Era Comum) e a Sabedoria de Salomão (século I antes da Era Comum), ambos lidos por Shakespeare, na apocrifia da Bíblia protestante de Genebra, e por muitos de nós, na apocrifia da Bíblia traduzida sob as ordens do rei Jaime. Imprimirei maior ênfase a Jó e ao Eclesiastes, obras-primas literárias, sendo Jó uma categoria à parte.

Sábios se fazem presentes em quase todas as tradições espirituais do mundo, tanto no Oriente quanto no Ocidente. Às vezes, a sabedoria de uma tradição é atribuída a um único indivíduo, representativo do todo. Sabemos que os cinco livros de Moisés não foram escritos por Moisés, e cabe a suposição de que os hebreus também o soubessem. O rei Davi era poeta, mas dificilmente poderia ter escrito todo o Livro dos Salmos. O fundador da sabedoria hebraica foi, supostamente, o filho de Davi, o rei Salomão, que não escreveu o Cântico dos Cânticos, nem os Provérbios, nem o Eclesiastes, muito menos a Sabedoria de Salomão. Ainda assim, Salomão dominava uma cultura sofisticada, e os poetas e sábios de sua corte, ao que tudo indica, orgulhavam-se de atribuir as próprias palavras à autoridade e à égide do rei. Mais do que Davi, Salomão era dotado de largueza de espírito, e consta que sua corte tenha produzido o Livro de J, ou Texto Javista, que vem a ser a obra mais contundente composta em hebraico antigo, bem como a história magnífica que conhecemos como II Samuel.

O Livro dos Provérbios, embora alguns dos aforismos ali incluídos pertençam à era salomônica, provavelmente, sucede à era do Redator, termo utilizado para designar o editor genial que coligiu a estrutura que compreende de Gênesis a Reis, na Bíblia Hebraica, conforme hoje a conhecemos. O Livro dos Provérbios é uma espécie de colagem, tratando com desatenção a história e suas calamidades. Os primeiros 22 capítulos (aproximadamente) referem-se, de certo modo, à corte de Salomão; o que se segue é uma miscelânea. O primeiro conjunto é mais sábio e mais célebre. Nenhum termo formal é mais adequado do que “aforismo”, mas os provérbios pouco têm em comum com as tradições francesa e alemã que convergem nos aforismos de Goethe e Nietzsche, tradição que, a meu ver, alcança o apogeu na extraordinária eloqüência antifreudiana de Karl Kraus, satirista vienense de origem judaica: “A psicanálise, em si, é a doença que ela mesma se propõe a curar.”

A sabedoria prudente, cuja apoteose é alcançada em Samuel Johnson e Goethe, não é facilmente assimilável ao ceticismo fascinante (por assim dizer) encontrado em Jó e no Eclesiastes. O Livro de Jó costuma ser definido como teodicéia, à semelhança de Paraíso Perdido, de John Milton, sendo o suposto objetivo de ambas as obras justificar os atos de Deus diante de homens e mulheres. Jó constitui o maior triunfo estético da Bíblia Hebraica, mas a reputação de teodicéia deixa-me aturdido. O “paciente Jó”, na verdade, é tão paciente quanto o Rei Lear, e nem a obra bíblica nem Rei Lear nos apresentam um Deus ou deuses justificados. E, o que é mais vital, os dois poemas demonstram que carecemos de uma linguagem adequada aos nossos confrontos com o Divino.

Ken Frieden, em um ensaio bastante útil (reimpresso na obra por mim organizada sob o título Interpretações Críticas Modernas: O Livro de Jó [Modern Critical Interpretations: The Book of Job, 1988], focaliza a questão dos nomes: de Jó, do Adversário, de Deus. O nome de Jó parece estar relacionado à palavra árabe awah, o que retorna a Deus, mas a interpretação rabínica entende que o nome seja, em si mesmo, antitético, significando, simultaneamente, “justo” e “inimigo” (de Deus). Javé, no Prólogo e no Epílogo, é mencionado em discurso direto, mas ao longo do poema é chamado de El, Elosh, Elohim e Shaddai, por Jó e seus companheiros. Temos, ainda, Ha-Satan, Adversário ou Acusador, embora não seja Satanás, no sentido miltônico.

Os comentaristas mais contundentes do Livro de Jó, na minha opinião, continuam a ser João Calvino, nos sermões, e Kierkegaard, mas deixo-os para o final da presente discussão, pois expressam complexas posições protestantes. Jó é um dos grandes poemas da humanidade, ainda que complicado e ambivalente. Um leitor comum, diante da Bíblia na chamada versão do rei Jaime, depara-se com uma obra dividida em cinco partes, segundo as competentes analogias propostas na tradução e nos comentários de Marvin H. Pope (Anchor Bible, Job, terceira edição, 1985). Temos um Prólogo (em dois capítulos), um Debate (capítulos 3-31), as extraordinárias admoestações de Eliú (capítulos 32-37), a Voz de Javé no Redemoinho (capítulos 38-41) e, finalmente, um dúbio Epílogo (capítulo 42).

O célebre Prólogo focaliza um diálogo impressionante entre Javé e Satanás, que aqui não é um marginal, mas um Acusador do Pecado, que atua com a devida autorização:

Houve um dia em que os filhos de Deus vieram apresentar-se perante o Senhor, e veio também Satanás entre eles.

Então o Senhor disse a Satanás: “De onde vens?” E Satanás respondeu ao Senhor, e disse: “De correr a Terra, de um lado ao outro, de cima, até embaixo.”

E disse o Senhor a Satanás: “Observaste meu servo Jó?, porque ninguém há na Terra semelhante a ele, homem íntegro e reto, temente a Deus, e que se desvia do mal.”

Então respondeu Satanás ao Senhor, e disse: “Teme Jó a Deus sem motivo?

“Porventura tu não cercaste de sebe, a ele, e a sua casa, e a tudo que ele possui? Abençoaste a obra de suas mãos, e seus bens têm aumentado na terra.

“Mas estende a tua mão, e toca-lhe em tudo que possui, e ele há de blasfemar contra ti na tua face.”

E disse o Senhor a Satanás: “Eis que tudo o que ele possui está sob o teu poder; somente contra ele não estendas a tua mão.” E Satanás saiu da presença do Senhor. (Jó 1, 6-12)

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* Fonte: BLOOM, Harold. Onde encontrar a sabedoria. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005. Disponível em http://veja.abril.com.br/idade/exclusivo/210905/trecho_sabedoria.html

Literatura para todas as idades – por Urariano Mota

07/12/2008

A semana passada, em comentário sobre a revista Nova Escola, prometi que escreveria alguma coisa sobre a minha experiência com a literatura para estudantes. Não cumpro bem agora a promessa. Mas passo a anotar duas ou três coisas.

Em minhas – na falta de melhor nome – aulas, a primeira coisa que aprendi foi que não se deve falar de literatura como um produto que sai dos livros. Deixe-se isso, por favor, para os professores de cursinhos, que pensam ensinar enquanto põem o pobre estudante a decorar nomes, datas, movimentos e obras principais. Isso não é literatura, não serve à literatura, nem serve ao conhecimento. Serve a um sistema estéril e formador de burros. Não se deve jamais falar de literatura com esse nome cheio de pompa e reverência, A Literatura. Fale-se da vida, dos problemas vividos por todos nós, velhos, jovens, crianças, homens, mulheres, animais e gente. Se não for assim, será mais pedagógico contar anedotas de Bocage e de Camões, em lugar dos livros desses excelentes poetas.

Só se deve falar sobre aquilo que apaixona a gente. Por favor, se você não descobriu a lírica de Camões, se não maturou no peito Manuel Bandeira, se não vê a beleza de Ascenso Ferreira, se não é capaz de sorrir e amar Machado de Assis, se não se emociona até as lágrimas com Lima Barreto, por favor, mantenha distância desses criadores. O silêncio sobre eles fará um dano menor que a citação burocrática. Melhor cantar Roberto Carlos, equilibrar mesas na ponta do nariz, imitar cornetas com o pente sobre a boca, fazer graça com arrotos altos e cavalares. Será mais pedagógico.

Um autor deve ser apresentado a partir de um problema, vivido por todos nós. Ora, se querem saber, nada como o conto Missa do Galo, de Machado, para todos os adolescentes. Eles entenderão até a última linha, vírgula e pontinho das reticências. Eles vão respirar todos os movimentos implícitos e insinuados da conversa da mulher solitária com um jovem. Eles são esse jovem. Eles sonham com essa noite ideal em que os espere uma senhora sozinha. Elas compreendem esse jovem e essa mulher. O conto tem todos os elementos de promessa de sexo e conflito com o pecado, antes de uma missa devota.

Os contos, quando lidos, devem ser muito bem lidos. Quero dizer, com pausas, entonações, vozes, risos, pulos – o que o diabo achar necessário – como um ator de rádio. Isso quer dizer que o professor comanda a narração, faz uma leitura prévia, e pede para que ela continue em volta. Digo que começa com o professor, porque nas escolas se perdeu o necessário e fundamental hábito de leitura em voz alta, todos os dias. Então é comum que um jovem estudante não saiba o valor de um ponto, de uma exclamação, de uma vírgula, de uma pausa – o valor ponderado de uma palavra em determinado contexto. Como poderão entender a maravilha de Manuel Bandeira, na infância com o coração a bater, se não souberem que a moça nua lhe fez o primeiro… ALUMBRAMENTO?

Mas entendam, a dramatização dos textos nada tem de dramático. Quero dizer, nada é artifício, artificioso, operístico, melodramático, falso. Ou se fala do que se conhece e do que se vive ou não se fala. Ponto. Deve-se falar do amor, sempre. E nisso não vai nenhum romantismo. Deve-se falar do amor, sempre, porque toda obra é a sua busca ou a sua negação, a sua falta ou plenitude. Mesmo quando se fale da guerra, da violência mais brutal, não se pode esquecer que os meninos no tráfico, por exemplo, amolecem como flores diante de suas mães. Que o bandido mais cruel é capaz de virar o mais perfeito idiota ante a mulher – ou o homem – por quem tenha amor.

Apesar de até aqui ter falado de minha própria experiência, devo terminar com duas coisas mais pessoais. Primeira: não consigo até hoje falar de Andersen com profissionalismo, isenção e distância, quando me refiro ao conto A pequena vendedora de fósforos. Aquela trajetória da pequena menina que sai a vender fósforos em uma véspera de Ano Bom, nas ruas geladas de uma cidade, que vislumbra pelo vidro embaciado das janelas a ceia posta nas casas burguesas, e com profunda fome fica encantada… sei não. E me fere mais, e aí não vou adiante, quando Andersen realiza aquela imagem extraordinária: enregelada, morta, a pequena vendedora sobe “em um halo de luz e de alegria, mais alto, e mais alto, e mais longe… longe da Terra, para um lugar, lá em cima, onde não há mais frio, nem fome, nem sede, nem dor, nem medo”. Este é um conto que por várias vezes tentei ler em voz alta, em aulas de português para adolescentes pobres, e por mais de uma vez não consegui.

Segunda. Certa vez, li para alunos com idades em torno de 11 anos o meu conto Daniel. Claro, expurguei os termos mais fortes, chulos, grosseiros. Quando eu li

“Da turma, Daniel era o mais gordo. Ainda que sob protestos, ele crescera pelos lados, elastecendo um círculo de carnes. Em seu rosto largo destacavam-se sobrancelhas peludas, que se uniam simetricamente num ponto de inflexão, ficando a sobrancelha esquerda e a sobrancelha direita ligadas como asas dum pássaro, movendo-se no espaço da fronte”,

na sala não se ouvia uma só riso, apenas respirações ofegantes. Então eu ia para o quadro e desenhava as sobrancelhas, à Monteiro Lobato, para eles verem. Depois, já ao fim, quando acrescentei que Daniel raspara aqui e ali o seu estigma, e que “a cirurgia deu nascimento a dois pontos de interrogação deitados, quase a dois acentos circunflexos incompletos, sem acomodação”, voltei ao quadro e desenhei os dois pequenos ganchos que ficaram no lugar das sobrancelhas.

O melhor digo agora no fim. Vocês não vão acreditar no lirismo de que é capaz a infância. Os meninos rebatizaram o conto. Em lugar de Daniel, eles me pediam para ouvir de novo O menino-passarinho.