Pamuk depois do processo

por LILA AZAM ZANGANEH

Perseguido por denunciar os abusos contra os direitos humanos em seu país, o escritor turco fala das raízes intelectuais e burguesas do nacionalismo e critica o romance político

Um milhão de armênios e 30 mil curdos foram assassinados nesta terra, e ninguém, exceto eu, ousa falar disso.” O romancista turco Orhan Pamuk confiou sua amargura ao jornal suíço “Tages Anzeiger” num dia de fevereiro de 2005.
Ele não teria podido imaginar, na época, a reação em cadeia que suas palavras iriam desencadear: campanha de imprensa, ameaças e intimidações, um vice-governador que pediu a destruição de todos os seus livros, um exílio temporário, e, finalmente, um processo kafkiano baseado numa lei de junho de 2005 cujo artigo 301 prevê penas de seis meses a três anos de prisão para quem insultar as instituições ou a identidade turcas.

Sob pressão da comunidade internacional, a Justiça do país terminou por arquivar o processo, o que foi feito em 23 de janeiro deste ano. Mas o mal já tinha sido feito: Orhan Pamuk tornou-se o escritor impossível de ser encontrado. Aqui ele abre uma única exceção: ei-lo usando terno preto, com a expressão um tanto quanto irritada e as costas muito ligeiramente arqueadas: “Estou atrasado – me desculpe”.

PERGUNTA – Em 1985, o sr. acompanhou Arthur Miller e Harold Pinter numa viagem patrocinada pelo PEN American Center e a Helsinki Watch, as quais queriam redigir um relatório sobre a situação dos direitos humanos na Turquia. Que impressões essa aventura lhe causou?

ORHAN PAMUK – Em 1980, houve um golpe militar no país. A liberdade de expressão foi suspensa. Os direitos humanos passaram a ser desprezados. Nas prisões havia inúmeros abusos. Apesar disso, as pessoas falavam – as famílias dos presos e também os escritores.

PERGUNTA – O sr. se sentia solidário? Culpado? Esse é um dualismo que está presente em seus romances de maneira obsessiva.

PAMUK – Por um lado, sentia dentro de mim uma explosão de vergonha, como já pude observar em outras partes do mundo com a chegada, vindos dos EUA ou da Europa, de estrangeiros encarregados de investigar a natureza de uma democracia ou a ausência de liberdades: isso provoca uma vergonha muito difícil de formular, mas que, porém, é sentida por todos. Por outro lado, pareceu-me, repentinamente, que também poderia existir uma solidariedade internacional entre escritores, vistos como os representantes não de seus países de origem, mas do mundo: uma solidariedade nascida de um respeito compartilhado – diria que quase religioso – pela liberdade de expressão.

PERGUNTA – No entanto o sr. não é um escritor “político”. O sr. gosta de criar seus próprios mundos oníricos e multicoloridos. Aliás, alguns de seus romances têm nomes de cores: “Meu Nome É Vermelho”, “O Livro Negro”, “O Castelo Branco” etc.

PAMUK – É verdade, no início eu era um tanto quanto nabokoviano. Escrevia essencialmente pela beleza. Enquanto gerações inteiras de escritores turcos tomavam como seus modelos John Steinbeck ou Máximo Górki – e destruíam o essencial de seu talento, colocando-o a serviço de alguma coisa que supostamente os ultrapassava -, eu lia Nabokov e sonhava. Hoje, 25 anos mais tarde, sei que, se naquela época tivesse cometido o erro de escrever romances políticos, teria sido destruído. O sistema teria me aniquilado.

PERGUNTA – E “Neve”, em 2004? Por que repentinamente escrever um romance sobre o islã, o nacionalismo, o suicídio de jovens obrigadas a retirar seus véus numa cidadezinha do nordeste do país?

PAMUK – Decidi escrever um romance político porque, de repente, senti vontade de relatar meu país de outra maneira. Na realidade, cada um de meus romances é estruturalmente diferente dos outros. E, bem, eis um romance radicalmente diferente. Para mim, todo o prazer da ficção consiste justamente no ato sempre renovado da composição, logo antes da execução. A escrita propriamente dita, depois disso, não passa de ato artesanal.

PERGUNTA – Hoje o sr. se sente tendo certa responsabilidade em relação à Turquia?

PAMUK – Digamos que nunca, em toda minha vida, procurei assumir a maioria das responsabilidades políticas que repentinamente passaram a cair sobre meus ombros! Mas elas acabaram caindo sobre mim, em razão de invejas, ressentimentos, tabus e pressões diversas. É como se alguma coisa caísse sobre você de uma janela superior, no momento em que você está caminhando pela rua, despreocupado. E, pelos fatos de o país ser reprimido e por eu gozar de uma suposta estatura internacional, estou sendo obrigado a me adaptar a esse novo destino. Isso não me agrada. Meu desejo secreto sempre foi ser um artista livre. Para mim, no fundo, a responsabilidade da escrita se limita ao jogo demoníaco e mágico com as regras do mundo. Ser uma personalidade pública não é bom para o trabalho do escritor. E, quanto a ser uma personalidade política, não vamos nem sequer falar disso. É um desastre!

PERGUNTA – Que escritores o sr. admira acima de tudo?

PAMUK – Tolstói, Nabokov, Thomas Mann, esses são meus grandes escritores. E Proust, naturalmente. Mas você precisa tentar imaginar todos esses escritores em Istambul, lidos e meditados desde minha janela. Veja bem: enquanto a maioria dos escritores turcos se preocupava em tecer comentários realistas ou sociais, era Proust que me falava à alma, com suas longas orações barrocas, às vezes claras, às vezes obscuras, mas sempre tão voluptuosas e infinitamente polissêmicas.

PERGUNTA – Alguma vez, antes de “Neve”, o sr. sentiu atração pelo romance político?

PAMUK – Sim. Tenho um romance inacabado que data de 25 anos atrás. É um romance político dostoievskiano, se posso ousar dizê-lo, no qual se misturavam radicalismo de esquerda e demonismo místico. Mas aconteceu o golpe de Estado, e teria sido impossível publicá-lo. Foi então que, não sem grande espanto, me dei conta de que alguns de meus antigos amigos marxistas se sentiam atraídos pelo islamismo e a logorréia antiocidental.

PERGUNTA – Num ensaio publicado na “New Yorker” em dezembro de 2005 – um mês antes de seu processo em Istambul -, o sr. escreveu que o nacionalismo turco tem raízes às vezes estranhas, ao mesmo tempo intelectuais e burguesas.

PAMUK – Sim. É como se, para se precaverem contra o espectro da anomia globalista e, ao mesmo tempo, contra o rancor ansioso das classes trabalhadoras, as classes cultas em alguns momentos optassem pelo crispar nacionalista mais sumário possível: “Turcos e nada mais!”. É claro que essa elite é uma velha sociedade pré-moderna. E, por reflexo coletivo, ela às vezes prefere definir-se mais pelo sentimento nacional do que pela modernidade – com as conseqüências, para a democracia, que já conhecemos.

PERGUNTA – Ela também sente a tentação do islamismo?

PAMUK – Não obrigatoriamente. Diz o clichê que a Turquia se deixa envenenar pelo islã político. Na realidade, porém, existem tantas cores e nuanças que o fundamentalismo puro e duro se dilui nelas. Por exemplo, temos seitas sufis ou grupos esparsos que, reunidos, formam o imenso espectro daquilo a que se dá o nome de “islã político”. Mas, atenção, também estão presentes na Turquia setores antiocidentais seculares e antidemocratas ateus! Tudo isso forma uma configuração política de extrema complexidade. E, naturalmente, para o romancista, cria toda uma paleta de cores preciosas.

PERGUNTA – De onde vem esse interesse, manifestado em “Neve”, pela Turquia desassistida, por essa cidade de Kars assombrada por uma profunda ambivalência entre o islamismo, justamente, e o kemalismo [ideologia baseada nos princípios de Kemal Atatürk (1881-1938)]?

PAMUK – De repente, senti um desejo grande de narrar a Turquia contemporânea, o islã político, o fundamentalismo, o secularismo, o tropismo nacional pelos golpes de Estado militares, o nacionalismo de nossos grupos étnicos, as forças políticas e suas facções insondáveis. E desejei que a história fosse ambientada numa cidadezinha de pobreza muito grande e que essa cidadezinha se transformasse num microcosmo da Turquia, tal como a vejo hoje. Quis tecer uma intriga que revelasse os mistérios e as aparências falsas de meu país, os modos de pensar sibilinos, o extraordinário labirinto político.

PERGUNTA – O sr. gosta de falar das hesitações demoníacas de seus personagens. E também, como em “Neve”, descrever a vertiginosa complexidade do cenário turco. Como o sr. sabe, os ocidentais se sentem muito tentados a simplificar tudo isso, para seus propósitos políticos próprios.

PAMUK – Se você pudesse imaginar o número de pessoas que sabem que sou pró-europeu, que desejo ardentemente a integração da Turquia na União Européia -e que me criticaram pelo fato de meu romance “contradizer” minhas idéias políticas! Num primeiro momento, isso me surpreendeu. Depois, me encantou. Pouco importam minhas opiniões políticas pessoais. É preciso que um romance carregue suas forças próprias e defenda suas próprias cores, como acontece com Thomas Mann.

PERGUNTA – Christopher Hitchens, na revista “Atlantic Monthly”, o acusou de retratar seus personagens islâmicos com mais simpatia do que os outros?

PAMUK – Minha regra de ouro é a seguinte: para escrever um bom romance, é preciso identificar-se com todos os personagens. E é a identificação com os personagens mais sombrios que torna o romance ainda melhor. Naturalmente, o exemplo, nesse caso, é Dostoiévski.

PERGUNTA – E seu novo romance? Aquele sobre o qual se comenta que trata da alta sociedade turca e das aventuras sociais e sexuais da Turquia contemporânea?

PAMUK – Ele não está avançando. Esse processo me fez perder um tempo inimaginável.

PERGUNTA – O sr. chegaria a dizer que o processo mudou o rumo de sua vida?

PAMUK – De minha vida de escritor, sim, sem dúvida. Mas hoje estou tentando reencontrar minha vida de antes do processo, aquele tempo anterior à tempestade -em suma, retomar a trama do sonho.
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Este texto foi publicado no “Le Monde”.
Tradução de Clara Allain
Fonte: Folha de S. Paulo, Caderno Mais, 02 de julho de 2006, p. 10. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0207200616.htm

2 Respostas to “Pamuk depois do processo”

  1. Anonymous Says:

    o titulo dessa entrevista poderia ser “a arte do romance segundo…”beleza de reflexao, aula de escritura profunda e ao mesmo tempo cheia de bons conselhos.a “chave de ouro” de Pamuk é tao simples que até pode passar despercebida – e no entanto, concordo com ele, é a trave mestra de qualquer romance que mereça esse nome.abraço,Regina

  2. João Vicente Nascimento Lins Says:

    Ótima entrevista,a Turquia é realmente a linha divisória entre a civilização judaica cristã ocidental e o islamismo, e ao mesmo tempo vive uma grande confronto entre entrar na União Européia, e ser menos radical, ou abraçar de vez suas raízes culturais com o islamismo existentes desde o século X D.C.

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