A beleza salvará mesmo o mundo? – por Paulo Timm

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“O poeta nos permite desfrutar nossas próprias fantasias, sem censura, sem pudor.”  (Sigmund Freud)

Recomenda o velho ditado que, se não tens nada a dizer, fiques calado. Afinal, se a fala é de prata, o calar é ouro fino. Conselho importante para se ter presente nas reuniões sociais, mas inviável para quem vive de fazer-se ouvir. Não falo do viver como instância material, mas como substância existencial, sem a qual um escritor, poeta, romancista ou cronista se exila de si e morre de inanição. Mas o que dizer diante de tanta miséria humana, exposta aos olhos do mundo na tragédia do Haiti? Como compatibilizar uma consciência iluminista com a vitória de um aliado de Pinochet no Chile? Dá para suportar a edição de mais um Big Brother Brasil na Rede Globo, sobre o qual convergirão os indicadores de audiência, estimulando as outras redes com programas similares?

Não sei não…Folheio livros, releio meus arquivos eletrônicos, verdadeiro porta-jóias de minhas leituras diárias, arrisco-me a comentar uma entrevista de Willian Faulkner na qual ele abre o jogo sobre o segredo dramático de seus romances… Querem saber?

Trata-se da trindade da consciência. Uma “santíssima trindade” laica que iria influenciar gerações inteiras de escritores, chegando até nosso imortal Gabriel Garcia Marques, que nele se inspirou. Os romances de Faulkner, segundo ele, giram em torno de três personagens chaves, detentores de três tipos de consciência: os que nada sabem – e porque não sabem, pouco se importam e nada fazem –; os que sabem e não se importam – que são os cínicos –, que locupletam nosso universo político; e os que sabem e se importam – que são os que carregam as mazelas do mundo, Zilda Arns entre eles, como outrora Luther King e tantos outros abnegados. Com base nesses personagens Faulkner diz que o escritor está sempre tentando criar “pessoas verossímeis em situações comoventes e críveis, da maneira mais comovente” de forma a expor a vida em movimento, pois é no movimento da vida que as pessoas vivem. A vida é movimento, diz ele, e o movimento está ligado ao que faz com que o homem se mova, que é a ambição, o poder, o prazer”. E adverte: “Qualquer tempo em que um Homem possa dedicar à moralidade ele tem que arrancar à força do movimento do qual faz parte. Sua consciência moral é a maldição que ele tem que aceitar dos deuses de modo a obter deles o direito de sonhar.”

Me pergunto: Alguém tem culpa pelo que ocorre no Haiti? Quem sabia e nada fez para mudar o curso de um destino trágico? Quem sabia, tentou fazer e não conseguiu? E não pergunto pelos que nem sabiam e nada fizeram, porque deles é Reino de Deus… Basta-lhes a felicidade do simples jogo da vida, escapando-lhes o direito de sonhar…. E quanto ao Chile, de quem é a culpa pela vitória de Piñeros? E como o mundo civilizado permite reedições sistemáticas do Big Brother por todos os seus países…?

Volto ao Romance.Nele me refugio. Com efeito, ainda não se conseguiu, mesmo com o desenvolvimento considerável das Ciências Humanas no Século XX, nada comparável ao Romance como Teoria da Existência Humana. E, assim, continuamos no pólo da sensibilidade, antena da beleza, para entender o Homem. Mas por que, então, tanto (esforço) à verdade e tão pouco à beleza se ela, a verdade, é tão inatingível? Leon Tolstoi alimentou tantos sonhos em sucessivas gerações russas para, afinal, confiná-las, sob o condomínio da verdade administrada pelo marxismo soviético, à depressão dos Gulags. Dostoievski, no seu encalço, acreditava que só a beleza salvaria o mundo. E apostou nisso criando as mais belas páginas de literatura mundial. Salvou alguma coisa? Ou, simplesmente, não conseguiu sensibilizar aquele maravilhoso povo, suficientemente, para o primado da beleza sobre a verdade…?

Sempre o Romance… Tecendo o fio de existências humanas grandiosas mas incompletas, sem direito à História, cativa da razão.

Longe da nossa tradição ocidental, marcada por Shakespeare, e o corolário de romancistas , desde Crétien de Troyers, com Lancelot e Tomas Malory, no Sec. XV, passando no século seguinte aos épicos de Cervantes , Mme. Lafaeyete e Daniel Defoe, para fechar-se num prodigioso ciclo de “folhetins” inaugurado por Goethe, em 1796, com o histórico “Os anos de aprendizagem de W. Meister”, seguido dos grandes “fleuves” de Honoré de Balzac – “A Comédia Humana” – e Émile Zola, Rougon Marquart, num imenso fluxo que desembocaria no início do século XX em James Joyce, Romain Rolland, Roger Martin Du Gard e Sartre, Milan Kundera nos fala dos formadores de consciências do lado oriental da Europa, evidenciando também sua importância para este, que foi o memorável autor da “Insustentável leveza do (de) ser”:

“Musil e Hermann Brock sobrecarregaram o homem com responsabilidades enormes. Eles o viam como a suprema síntese intelectual. O último lugar onde o homem ainda questiona o mundo como um todo. Estavam convencidos de que o romance tinha um tremendo poder sintético, que ele podia ser fantasia, aforismo e ensaio. Tudo ao mesmo tempo.O objeto específico daquilo que Brock gostava de chamar “conhecimento novelístico” é a existência. A meu ver, a palavra “poli-histórico” deve ser definida como aquilo que reune todo artifício e toda forma de conhecimento de modo a lançar luz sobre a existência”.

Será que as novas gerações estão lendo esses autores com a mesma sofreguidão com que nós o fazíamos. E descobrindo o universo da natureza com os livros equivalentes de Julio Verne, H.G.Wells, Arthur Clarck, Arthur Koestler? Ou estão apenas embalados na fantasmagoria de Harry Potter e Paulo Coelho?

Não sei…

Mas pelo sim, pelo não, vale a pena insistir na beleza como caminho da salvação, senão do mundo, dos nossos pobres espíritos massacrados por tantas e sucessivas verdades. E quem sabe o espírito reanimado não seja o caminho da reconciliação. “Minha pátria é minha língua”, insistia Fernando Pessoa, deleitando-se com as palavras que dançavam nos seus versos propiciando-lhe momentos de verdadeiro êxtase. As “Cartas a um Jovem Poeta”, de Rainer Maria Rilke são igualmente comoventes e nos ajudam a suportar o delírio de um mundo insano, predispondo-nos, quem sabe à ação. Entrego-me a elas e a elas lhes convido, num rápido passeio sobre as que me parecem suas mais belas passagens:

Cartas a um jovem poeta

1 – Paris, 17 de fevereiro de 1903

Não há senão um caminho: Procure entrar em si mesmo

Não escreva poesias de amor, relate suas mágoas e seus desejos

Utilize, para se exprimir, as coisas de seu ambiente, as imagens de seus sonhos e os objetos de suas lembranças

Se a própria existência cotidiana lhe parecer pobre, não a acuse. Acuse a si mesmo.Volte a atenção para sua infância.

Uma obra de arte é boa quando nasceu por necessidade

O criador… deve ser um mundo para si mesmo e encontrar tudo em si e nessa natureza a que se aliou.

2 – Viareggio, 5 de abril de 1903

Toda uma constelação de eventos se deve reunir para que uma única vez se alcance um resultado feliz.

Não se deixe dominar pela ironia, sobretudo em momentos estéreis. Nos momentos criadores procure servir-se dela , como de mais um meio para agarrar a vida. Utilizada com pureza, ela também é pura e não nos deve envergonhar. Ao verificar porém, que se familiariza demais com ela , temendo uma intimidade excessiva, volte-se para objetos grandes e graves, diante dos quais ela se encolhe desajeitada. busque o âmago das coisas onde a ironia nunca desce

3 – Viareggio, 23 de abril de 1903

O próprio destino é como um amplo e admirável tecido em que dedos de infinita ternura conduzem cada fio, colocando-o entre os demais, fixando-o a cem outros que o sustentam.

As obras de arte são de uma infinita solidão; nada as pode alcançar tão pouco quanto a crítica. Só o amor as pode compreender e manter e mostrar-se justo com elas .É sempre ao seu sentimento que deve dar razão.

Deixar amadurecer inteiramente, no âmago de si, nas trevas do indizível e do inconsciente, do inacessível a seu própria intelecto, cada impressão, cada germe de sentimento e aguardar com profunda humildade e paciência a hora do parto de uma nova claridade.

Ser artista não significa calcular e contar, mas sim amadurecer como a árvore que não apressa a sua seiva.

Aprendo-o diariamente no meio das dores a que sou agradecido: a paciência é tudo.

A experiência artística está tão incrivelmente perto da experiência sexual no sofrimento e no gozo que os dois fenômenos não são senão formas diversas da mesma saudade e da mesma bem-aventurança.

4 – De passagem por Worpswede, 16 de julho de 1903

Creio, contudo, que o (….) não deixará de encontrar uma solução, se agarrar a coisas que se assemelham a si, como as que agora dão repouso aos meus olhos. Se se agarrar à natureza, ao que ela tem de simples, à miudeza que quase ninguém vê e que tão inesperadamente se pode tornar grande e incomensurável; se possuir este amor ao insignificante; se procurar singelamente ganhar como um servidor de confiança daquele que parecer pobre – então tudo se lhe há de tornar fácil, harmonioso e, por assim dizer, reconciliador, não talvez do intelecto, que fica atras espantado, mas sim na sua mais íntima consciência, que vigia e sabe.

A carne é um peso difícil de se carregar.

A criação intelectual, com efeito, provém também da criação carnal. É da mesma essência; é apenas uma repetição silenciosa, enlevada e eterna da volúpia do corpo. Numa idéia criadora revivem mil noites de amor esquecidas que a enchem de altivez e altitude.

Sobre a base do acaso que parece cumprir-se nesse abraço, acorda a lei que faz que um germe forte e poderoso avance até que o óvulo que vem aberto a seu encontro. Não se deixe enganar pela superfície: – nas profundidades tudo se torna lei.

Por isso, caro senhor, ame a sua solidão e carregue com queixas harmoniosas a dor que lhe causa. Diz que os que sentem próximos estão longe. Isto mostra que começa a fazer-se espaço em redor de si. Se o próximo lhe parece longe, os seus longes alcançam as estrelas, são imensos

Mas a sua solidão há de dar-lhe, mesmo entre condições muito hostis, amparo e lar, e partindo dela encontrará todos os caminhos. Todos os seus desejos estão prontos a  acompanhá-lo e minha confiança está consigo.

5 – Roma , 29 de outubro de 1903

Há muita beleza aqui, porque há beleza em toda parte.

6 – Roma, 23 de dezembro de 1903

Ao verificar que sua solidão é grande, alegre-se com isto

Há uma solidão só: é grande e difícil de se carregar

O que se torna preciso, é … isto: solidão, uma grande solidão interior. Entrar em si mesmo, não encontrar ninguém durante horas – eis o que se deve saber alcançar.

O que importa apenas, é prestar atenção ao que nasce dentro de si e colocá-lo acima de tudo o que  observar ao redor.

Os seus acontecimentos interiores merecem todo seu amor; neles de certa maneira deve trabalhar e não perder demasiado tempo e coragem em esclarecer suas relações com os homens.

A posição em que agora deve viver não é mais carregada de convenções, preconceitos e erros do que todas as outras.

O solitário é como uma coisa submetida às profundas leis.

Não tendo nenhuma comunhão com os homens, procure ficar perto das coisas, que não o abandonarão. Ainda há as noites e os ventos que passam pelas árvores e percorrem muitos países.

Que sentido teria a nossa vida se Aquele a que aspiramos já tivesse sido.

Como as abelhas reúnem o mel, assim nós tiramos o que há de mais doce em tudo para o construirmos.

7 – Roma, 14 de maior de 1904

Não se deve deixar enganar em sua solidão, por existir algo em si que deseja sair dela.

Tudo na natureza cresce e se defende segundo a sua maneira de ser; e faz-se coisa própria nascida de si mesma e procura sê-lo a qualquer preço e contra qualquer resistência.

Sabemos pouca coisa, mas que temos de nos agarrar ao difícil e uma certeza que não nos abandonará.

É bom estar só porque a solidão é difícil

O fato de uma coisa ser difícil deve ser um motivo a mais para que seja feita.

Amar também é bom: porque o amor é difícil

O amor de duas criaturas humanas talvez seja a tarefa mais difícil que nos foi imposta, a maior e última prova, a obra para a qual todas as outras são apenas uma preparação.

O amor, antes de tudo, não é o que se chama entregar-se, confundir-se, unir-se a outra pessoa.

O amor é uma ocasião sublime para o indivíduo amadurecer, tornar-se algo em si mesmo, tornar-se um mundo para si, por causa de um outro ser; é uma grande e ilimitada exigência que se lhe faz, um escolha e um chamado para longe.

8 – Borgeby Gard, Flãdie, Suécia, 12 de agosto de 1904

Perigosas e más são apenas as tristezas que levamos por entre os homens para abafar a sua voz.

Se nos fosse possível ver além dos limites de nosso saber e um pouco além da obra de preparação de nossos pressentimentos, talvez suportássemos nossas tristezas com maior confiança que nossas alegrias. São, com efeito, esses os momentos em que algo de novo entra em nós, algo de ignoto: nossos sentimentos emudecem com embaraçosa timidez, tudo em nós recua, levanta-se um silêncio e a novidade, que ninguém conhece, se ergue aí, calada, no meio.

Por isto é importante estar só e atento quando se está triste.

Não se observe demais. Não tire conclusões demasiadamente apressadas do que lhe acontece. Deixe as coisas acontecerem.

8 – Furugborg, Jonsered, Suécia, 4 de novembro de 1904

Acredite-me: a vida tem razão em todos os casos.

Quanto aos sentimentos: São puros todos aqueles que o senhor concentra e guarda; impuros os que agarram só um lado de seu ser e o deformam.

Tudo o que pode pensar a respeito de sua infância é bom.

Tudo o que o torna algo mais do que foi até agora em suas melhores horas é bom.

Toda intensificação é boa, quando está em todo o seu sangue, quando não é turva ebriedade, mas alegria cujo fundo se vê.

9 – Paris, dia seguinte ao Natal de 1908

A arte também é apenas uma maneira de viver. A gente pode preparar-se para ela sem o saber, vivendo de qualquer forma. Em tudo o que é verdadeiro, está-se mais perto dela do que nas falsas profissões meio-artísticas. Estas, dando a ilusão de uma proximidade da arte praticamente negam e atacam a existência de qualquer arte. Assim o faz, mais ou menos, todo jornalismo, quase toda a crítica e três quartos daquilo que se chama literatura.


* PAULO TIMM é Economista, Pós Graduado ESCOLATINA, U.de Chile – Ex Presidente do Conselho de Economia DF, Professor da UnB –paulotimm@hotmail.com Publicado em Via Política e na Coluna do Timm.

2 Respostas to “A beleza salvará mesmo o mundo? – por Paulo Timm”

  1. vidal neto Says:

    muito relevante seu texto, vivemos numa sociedade ” do espetáculo” , omde a indústria cultural padroniza a tudo e todos , tenta mas vem a arte pra contradizer sempre e nos dá alento, parabéns pelo texto.

  2. Jaci Kussakawa Says:

    Diante da pergunda: A beleza salvará mesmo o mundo? – por Paulo Timm, eu inicio com a carta de Rilke (Paris no dia seguinte ao natal de 1908): “A arte também é apenas uma maneira de viver” e assim ir em direção a minha reflexão, a arte de Gustav Klimt em sua obra tela “O Beijo” (1907). Em que o artista austríaco como representante de uma certa liberalização preconizada por uma elite intelectual mostra na tela a sensualidade profunda e o seu amor intenso. Ao mostrar nessa tela um casal beijando, que emerge de um campo de flores em ricos desenhos decorativos. Uma imagem audaciosa, sensual e onírica embalada em teorias de Sigmund Freud e Otto Weininger. Ao demonstra toda a sua sensíbilidade, contudo, mal interpretado por aqueles que viam suas obras somente sob a perspectiva do erotismo, uma vez que o erotismo é a fonte primária para as idéias libertárias nessa perspectiva de análise. Abraços, Jaci

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