A auto-imolação de Ivan Ilitch – por Paulo Bezerra

Na obra-prima de Tolstói, que impressiona por sua atualidade, a morte de um burocrata é vista como mero deslocamento de um mórbido xadrez da burocracia.

A editora 34 acaba de publicar A morte de Ivan Ilitch, em tradução revista (ou “retradução”, segundo o próprio tradutor) do mestre Boris Schnaidermann. Trata-se de uma leitura imprescindível por dois motivos: como novela a obra chega à perfeição formal em termos de composição, distribuição e justaposição de seus componentes estruturais; porque em nossos dias os valores essenciais da condição humana estão em liquidação no mercado de refugos e os dois órgãos principais da justiça do país – o Supremo Tribunal Federal e o tal Conselho Nacional de Justiça – só pensam “naquilo”, isto é, em dinheiro, arvorando-se de donos do caixa do país. Pois é justamente dessa alienação do judiciário que trata a obra.

Tolstói retoma o tema da alienação, porém com dimensões filosóficas amplas e profundas e um sentido trágico nunca alcançado antes na literatura russa. Para ele, reflete-se sobre a morte visando à essência da vida, porquanto a atitude do homem em face da morte define a qualidade de sua vida e a possibilidade de encontrar um sentido para ela.

A narrativa começa pela morte de Ivan Ilitch, com um dado sintomático: ele exerce um cargo muito elevado no Ministério da Justiça, mas seus colegas imediatos são surpreendidos pela notícia de sua morte dada por um jornal. Essa surpresa revela a fria indiferença burocrática pelo destino do colega durante sua prolongada doença.

A reação dos colegas à morte de Ivan Ilitch revela total ausência de afetividade e define muito bem a consciência coletiva: em vez do sentimento natural de perda de um ser humano, e ainda mais colega de quem, segundo o narrador, “todos gostavam”, todos, porém, e sem exceção, começam a pensar que a subida de um deles ao posto antes ocupado pelo morto provocará promoções em cascata que beneficiarão cada um e trarão conseqüente melhoria dos vencimentos. Nenhum apego à vida do outro, a morte de um burocrata é mero deslocamento de uma peça no mórbido xadrez da burocracia.

A essa banalização das relações humanas no ambiente de trabalho somam-se, como diz o narrador, um sentimento de alegria em cada um dos colegas, “porque morreu ele, e não eu”, e a queixa dos conhecidos mais íntimos por terem de cumprir a chatíssima obrigação de assistir às cerimônias fúnebres e fazer uma visita de condolência à viúva, que, para o desânimo e o aborrecimento deles, mora muito longe. Que se dane o morto!

Os colegas saem do velório e terminam a noite à mesa do carteado, a viúva só pensa em arrancar o máximo de dinheiro do erário pela morte do marido e, assim, família e burocracia, juntas, fazem parte do mesmo sistema de valores, do mesmo ciclo de morte no qual Ivan Ilitch imolou-se em vida. Essa relação com a morte espelha o padrão que devora Ivan Ilitch, objeto e também sujeito desse tipo de civilização. Herda a tradição burocrática do pai, que termina a carreira em posto elevado e com vencimentos elevados, mesmo tendo pouca instrução. Ivan Ilitch cursa a escola de direito, mas isto não altera em nada a qualidade da função que exerce, e aí o sistema revela um funesto imobilismo histórico, pois pai e filho se revezam num continuum orgânico imune às variações do tempo para reduplicar os mesmo valores e o mesmo caráter de civilização.

Ao longo da carreira, Ivan Ilitch se adapta à burocracia, e a ela soma sua filosofia de vida “leve, agradável e decente”, evitando problemas, episódios ou impressões desagradáveis, angústias, aflições, sofrimento e nunca pensar na morte. Nada mais lhe interessa a não ser a função: “O principal – diz o narrador – é que Ivan Ilitch tinha o serviço. No mundo burocrático concentrava-se para ele todo o interesse de sua vida. E esse interesse o devorou”. Sublima tudo, investe toda sua afetividade no exercício frio de analisar papéis, dar audiências e tomar decisões sempre emanadas na letra fria da lei, e a isso se resume toda a essência de sua vida. Traduz com perfeição a expressão russa bumájnaia duchá (ao pé da letra “alma de papel”), definição de burocrata. E então seu eu antigo, todas as paixões de sua infância e mocidade se diluem sem deixar maiores vestígios, sua sensibilidade desce ao nível zoomórfico e, como a “mosca que procura a luz”, segundo palavras do narrador, ele sente atração instintiva por aquele mundo do alto. Anula-se como persona, assume o outro socialmente desejado e, deixando-se levar pela sensibilidade, pela vaidade e pelo “liberalismo” de salão desse outro, extingue-se como individualidade e esteriliza-se como agente de sua própria vontade: o sistema é sua alma.

Some-se a isto o culto dos objetos materiais e temos o homem reificado, isto é, o sujeito cujas determinações foram transferidas para os objetos materiais que, sem que ele se dê conta, anulam sua condição de sujeito e o reduzem a mero apêndice da engrenagem impessoal do sistema, tirando-lhe vontade e personalidade. Reificado, sua relação com a função se completa na relação com os bens materiais, e nesta ele encontrará a causa de sua morte, conseqüência natural de sua auto-imolação. E quando se revela seu mal incurável, o sistema “função-família-bem-estar-material” lhe nega o direito natural de morrer, ele se descobre sozinho e só encontra compreensão e solidariedade no criado Guerássim, homem do povo situado fora do sistema.

À luz de nossa realidade atual, em que a morte se transformou numa grande indústria, chega a ser chocante a atualidade da novela de Tolstói.

__________________________________________________

TRECHO: “O que mais atormentava Ivan Ilitch era o fato de que ninguém se compadecesse dele da maneira como ele queria: havia instantes, depois de prolongados sofrimentos, em que Ivan Ilitch queria mas que tudo, por mais que se envergonhasse de confessá-lo, que alguém se apiedasse dele como de uma criança doente. Queria ser acarinhado, beijado, que chorassem sobre ele, como se costuma acarinhar e consolar crianças. Ele sabia que era um juiz importante, que em parte já tinha uma barba grisalha, e que por isto seria impossível; mas, assim mesmo, queria. E nas suas relações como Guerássim havia algo próximo a isto, e por essa razão as relações com Guerássim confortavam-no. Ivan Ilitch quer chorar, deseja ser acariciado e que alguém chore por ele, e eis que chega o seu colega, o juiz Chebek, e, em lugar de chorar e animar-se, Ivan Ilitch compõe um rosto sério, severo, profundo, e, por inércia, diz a sua opinião sobre o significado de um acórdão de apelação, e insiste nela obstinado.”

O AUTOR

Lev Tolstói é um dos grandes autores da literatura russa do século XIX. Tornou-se conhecido pelos romances Guerra e Paz e Anna Karenina, porém é autor de contos igualmente notáveis. Nasceu em 1828, numa importante família ligada aos czares. Cedo ficou órfão. Estudou línguas orientais e direito na Universidade de Kazan. Serviu no exército russo, onde começou a escrever suas primeiras obras. Mais tarde, viajou por vários países da Europa. Regressou, então, à sua terra natal para administrar suas terras e dedicar-se à literatura. Morreu em 1910, em Astapovo, Rússia.

__________
* . Lev Tolstói. A morte de Ivan Ilitch. São Paulo: Editora 34, 2007, 96p.
* Fonte: EntreLivros, Ano 2, nº 23, março de 2007, p.62-63.

2 Respostas to “A auto-imolação de Ivan Ilitch – por Paulo Bezerra”

  1. Anonymous Says:

    Acredito que este é livro que estará dentro das leituras que eu preciso fazer. Pode me levar para uma melhor compreensão dos nossos tempos atuais e de um contexto maior. Jaci

  2. Anonymous Says:

    belo comentario, acho que sim, é necessario ler essa novela. mas eu ja dei, obrigada. esses grandes, enormes escritores russos parecem que nos espelham carregando nas tintas, tornando grotescas nossas mediocridades e cruéis nossas inconsequencias, a um ponto que acho insuportavel. minha reaçao é mais ou menos a que me provocou a leitura de 1984, do inglês Orwell, lido durante a ditadura e que até hoje me da arrepios de horror. agora so aguento o horror refinado pela ironia de Machado de Assis, que alguns ingleses consideram como o maior escritor do século XIX.abraço,Regina

Deixe um comentário